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O suicídio no contrato de seguro: um breve esforço histórico sobre a Súmula 610/STJ

23/11/2018

Tem-se como consolidado, hoje, pelo Código Civilista Brasileiro em seu art. 757, a definição do contrato de seguro como aquele pelo qual garante-se interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados, mediante pagamento de uma prestação denominada “prêmio”.

Esta espécie de contrato, embora ainda pouco debatida e difundida no universo jurídico, é objeto de estudo há muito tempo – na medida em que o interesse na garantia contra riscos não é um descobrimento recente da humanidade; muito diferentemente, tal preocupação remonta à antiguidade.

Todavia, a sociedade progrediu. Fenômenos sociais eclodiram e todos os fatores de desenvolvimento da sociedade trouxeram uma nova gama de riscos ao homem e, com eles, um interesse proporcional na amenização dos perigos que desestabilizam a existência da vida humana.

Na mesma esteira, a mutabilidade exigida pela evolução das relações humanas também demandou uma adequação e adaptação do Poder Judiciário em relação a como interpretar e solucionar os fenômenos sociais e acontecimentos da vida em sociedade e de seus indivíduos, de modo que a maneira de se lidar com os imbróglios evoluíssem na mesma velocidade das transformações sociais.

Ainda na vigência do Código Civil de 1916, tal discussão, relativa à devida cobertura ou não do contrato de seguro nos casos de suicídio, havia sido amenizada com a edição das Súmulas 61 do Superior Tribunal de Justiça, e 105 do Superior Tribunal Federal, segundo as quais o dever de indenizar decorreria da premeditação ou não do segurado – animus – de praticar o ato já na assinatura do contrato. Nestes casos, não haveria o dever de indenizar.

Para tanto, elucidava o art. 1.440 do codex de 1916:

Art. 1440. A vida e as faculdades humanas também se podem estimar como objeto segurável, e segurar, no valor ajustado, contra os riscos possíveis, como o de morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou outros semelhantes.

Parágrafo único. Considera-se morte voluntária a recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo.

Consoante se nota, preceituava o codex que somente seria segurável a morte involuntária. A morte voluntária, de outro lado, não se constituía em evento segurável. Não se poderia firmar seguro sobre a morte deliberada, buscada espontaneamente pelo segurado. Eventual contratação, com a ocorrência de morte voluntária, tornava nulo o contrato e colocava óbice ao recebimento da indenização por parte dos beneficiários.

Após intenso debate doutrinário e jurisprudencial, a discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal por diversas oportunidades e, inobstante as divergências e resistências, especialmente do Ministro Luiz Gallotti, acabou culminando na aprovação da Súmula nº. 105, em sessão plenária realizada no dia 13 de dezembro de 1963:

“Súmula 105. Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.”

A discussão também chegou às outras Cortes Superiores no que toca a exclusão do risco de suicídio voluntário e involuntário nas apólices de seguro de acidentes pessoais. E, por mais espantoso que possa parecer, foram discussões sobre essas cláusulas excludentes que deram ensejo a Súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça, aprovada pela Segunda Seção em 24 de outubro de 1992, que fala expressamente em seguro de vida, e não de seguro de acidentes pessoais:

“Súmula 61. O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado”.

O certo é que tais posicionamentos, seja no que toca ao seguro de vida, seja  no que diz respeito ao seguro de acidentes pessoais, desagradou muito o mercado segurador e gerou protesto dos mais aplicados juristas e estudiosos dos fenômenos dessa modalidade de contrato, não só em razão da dificuldade imposta às seguradoras de fazer prova da premeditação, uma árdua e ingrata tarefa pela própria subjetividade a ela inerente, praticamente impossível de se desincumbir, mas também porque havia o entendimento de que não só o suicídio premeditado não seria indenizável, mas também aquele cometido pelo segurado em sã consciência (voluntário).

Todavia, com o advento do Código Civil de 2002 a legislação deu tratamento inusitado e diverso à matéria no direito brasileiro, nos termos do art. 798:

Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.

Se antes a lei trazia um critério subjetivo – a premeditação, hoje se traceja pelo critério objetivo, qual seja, de tempo.

Ora, da interpretação literal do referido dispositivo resta claro que se trata de um critério objetivo. Se o sinistro, morte do segurado, sobrevier de suicídio, seja no seguro de vida seja no de acidentes pessoais, nos dois primeiros anos de vigência do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, os beneficiários não teriam direito à indenização, ou melhor, ao recebimento do capital segurado estipulado na apólice.

Neste sentido, a alteração da legislação reascendeu a discussão e fez surgir interpretações diferenciadas para o dispositivo.

A partir daí algumas teorias se teceram em relação ao embate entre o dispositivo legal e o entendimento jurisprudencial das Cortes.

A primeira teoria, denominada no Brasil de incontestabilidade ou indisputabilidade diferida, defenderia que a mens legis foi de extirpar qualquer discussão acerca da voluntariedade, ou não, do suicídio do segurado, estabelecendo um critério claro e objetivo de tempo, durante o qual perde o beneficiário o direito à indenização e, superado o interregno legal de dois anos, não pode a seguradora, em circunstância alguma, negar o pagamento do capital segurado.

Assim, para essa corrente, perderiam eficácia os enunciados sumulares dos Tribunais Superiores que atribuíam às seguradoras o ônus de fazer prova da premeditação do segurado.

Diferentemente,  em posicionamento diverso, a chamada teoria da não premeditação defendia não ter sido a intenção do legislador sepultar a discussão acerca da premeditação ou não do suicídio, mas que teria vindo, na realidade, para gerar a presunção de que, ocorrido o suicídio em período posterior aos dois anos de vigência inicial do contrato, não há que sequer cogitar de premeditação, mas que o contrário não ocorre: cometido o suicídio durante esse período, só se eximirá do pagamento da indenização a seguradora que fizer prova da premeditação do segurado.

Não tardou para que o Superior Tribunal de Justiça tivesse que passar a se posicionar e pacificar seu entendimento em relação às discussões doutrinárias, mas não sem que a discussão adentrasse a própria Corte e dividisse os votos da Terceira Turma entre a teoria da indisputabilidade diferida e da presunção da não premeditação.

Em uma breve elucidação da evolução interpretativa, até meados de 2015, o entendimento majoritário dos Tribunais compreendia o afastamento do direito nos casos de suicídio premeditado, cabendo à seguradora comprovar a intenção do segurado, de modo a fazer valer a interpretação das súmulas 61 e 105.

Todavia, a partir do REsp n. 1.334.005 (GO), julgado pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, o entendimento da Corte sofreu uma drástica mudança, passando a tutelar o critério objetivo de tempo, proposta pelo art. 798 do Código Civil.

De acordo com a ministra relatora do caso, Maria Isabel Galloti:

“Após a entrada em vigor do novo Código, portanto, quando se celebra um contrato de seguro de vida, não é risco coberto o suicídio nos primeiros dois anos de vigência […]. Após esses dois anos, por outro lado, diante do suicídio, a seguradora terá de pagar o prêmio, mesmo diante da prova mais cabal de premeditação. Não penso que essa reforma tenha beneficiado nem a seguradora e nem ao segurado, em tese, mas conferido objetividade à disciplina legal do contrato de seguro de vida”.

Apesar da inicial relutância dos Tribunais na aplicação da nova jurisprudência, após três anos, o entendimento solidificou-se na Corte Superior e, em 7 de maio de 2018, restou aprovada como enunciado sumular, pondo fim à batalha jurisprudencial e doutrinária acerca do tema.

Assim, a Súmula n.º 61 do STJ restou cancelada pela 2ª Seção da Corte, no próprio julgamento que deu origem à Súmula 610. Quanto à Súmula n.º 105 do STF, apesar de ainda vigente, sua aplicação perdeu efeito, visto o novo contexto legal advindo do Código Civil de 2002 e com a própria interpretação dada do art. 798 pelo STJ.

Sem embargo à evolução da visão jurisprudencial sobre o tema, entretanto, há de se questionar como suas nuances passarão a ser interpretadas e, principalmente, julgadas a partir da definição deste entendimento.

Pontos como se a suspensão dos contratos gerariam a recontagem do prazo de carência são pormenores que devem continuar a serem observados pelo universo jurídico, de modo que a evolução interpretativa da matéria continue em consonância com o desenvolvimento da sociedade.

REFERÊNCIAS

  • VIALLE, Rafaela Denes; MORAES, Rodrigo Carlesso. O suicídio no contrato de seguro de pessoas à luz do código civil de 2002. Trabalho de conclusão do curso de pós-graduação em direito civil e processual civil pela Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Cascavel (UNIVEL). Cascavel: 2011.
  • STJ. RECURSO ESPECIAL : REsp 133.400-5 GO 2012/0144622-7. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado: 08/04/2015. Disponivel em: < https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/201440523/recurso-especial-resp-1334005-go-2012-0144622-7?ref=juris-tabs>. Acesso em: 01 out. 2018.